Cursos e Eventos

Nenhum curso ou evento agendado

Administração Municipal

O ISS, a autonomia municipal e a lei complementar

Roberto A. Tauil – junho de 2013

Em razão da forma escrita no art. 156, III, da Constituição Federal, sempre se
guarda certa estranheza em tal redação, ou uma dúvida invade a nossa mente
sobre os limites da competência municipal de instituir o imposto sobre serviços.

Vamos transcrever o referido dispositivo para melhor explicar:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(...)
III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos
em lei complementar”.

Vale observar, inicialmente, que o artigo 156 in totum é o elemento básico de
confirmação da autonomia concedida aos Municípios pela própria Constituição. Em outras palavras, é o elemento propulsor que viabiliza objetivamente a autonomia política e administrativa dos Municípios, perante os demais entes políticos, por conceder-lhes a  capacidade legal de gerar recursos seus, tornando-os capazes de se manterem com as próprias pernas.

 Se não tivessem os Municípios os seus próprios tributos, a viverem apenas de
repasses assegurados por outros entes, que autonomia seria esta conferida na
Constituição? Nenhuma, pois não há autonomia administrativa sem autonomia
financeira; não há autonomia política de pessoa que não legisla e tem que viver
da legalidade alheia. Sem capacidade de instituir seus próprios tributos, os
Municípios nunca seriam autônomos, mas sempre tutelados sob os arreios das
leis federais e estaduais, recebendo somente o que estes considerassem justo
e razoável, porém, na ótica deles.

Dito isso, reconhece-se que é através do artigo 156 que a Constituição garante
a autonomia municipal, dando aos Municípios o direito de instituir os seus
impostos, tributos que, como se sabe, vinculam-se apenas aos termos da lei e
seus recursos podem ser utilizados livremente, na forma disposta nos
orçamentos.

Sendo assim, explica-se a perplexidade do teor do inciso III do referido artigo. “Definidos em lei complementar”, a dizer: os Municípios podem instituir o imposto, mas este será definido em lei complementar federal. A entender, portanto, que os Municípios nada instituem, se tudo depende de uma lei complementar da União. Que técnica diabólica foi esta, do constituinte dar com uma das mãos (a autonomia) e tirar com a outra? Seria esta a intenção?

Pois não foi.

O que temos diante de nós é um dos mais graves erros de interpretação, tanto
da Justiça quanto da maioria da doutrina, salvando-se alguns poucos juristas
que se propuseram a estudar a matéria com maior cuidado.

Para que serve uma lei complementar? A própria Constituição explica:

A) para dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

B) para regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

C) para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária.

A alínea C trata de normas gerais de legislação tributária, mas as normas
gerais já estão arroladas no Código Tributário Nacional (lei complementar). E
com base nas normas gerais do CTN, os Municípios aprovam suas leis
ordinárias. Pode até uma nova lei complementar alterar, ampliar ou substituir
normas do CTN, mas não pode interferir diretamente sobre um tributo
específico, a instituir normas gerais direcionadas a este tributo. Não seriam, assim, normas gerais, e, sim, específicas ao tributo. E tal tarefa quem produz é o legislador municipal, no caso do ISS, sob as ordens diretas da Constituição.

 A alínea B trata da regulação das limitações constitucionais ao poder de
tributar. Ora, o art. 156 já esclareceu este ponto: compete aos Municípios
instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na
esfera do ICMS. A expressão “qualquer natureza” não está ali para enfeitar ou
adornar a redação. Já se disse que, segundo a regra hermenêutica, a lei não
deve conter palavras ou expressões inúteis e vazias de conteúdo. Mais ainda a
Constituição Federal! Sendo de qualquer natureza, serviços de qualquer
natureza poderão ser tributados.

Todavia, temos, sim, uma importante exceção: “não compreendidos no art.
155, II”. A dizer, então, que compete aos Municípios instituir imposto sobre todos os serviços, menos aqueles que estão no campo de incidência do ICMS.

A concluir, portanto, que a lei complementar tem somente uma função na parte
reservada ao ISS: dispor sobre conflitos de competência, a que se refere a
alínea A acima.

Em outras palavras, cabe à lei complementar definir única e exclusivamente os campos de conflitos entre o ISS e o ICMS, além de outras incumbências taxativas e explicitadas na Constituição Federal.

Neste e somente neste aspecto evidencia-se a necessidade de lei complementar. Dirimir conflitos entre os próprios Municípios, na questão do local da incidência, e solucionar possíveis casos de bitributação com impostos da União (IPI e IOF) e dos Estados (ICMS). Cabe, também, à lei complementar: fixar as alíquotas máximas e mínimas; excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior; e regular a forma e as condições como isenções,
incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. É o que consta,
explicitamente, na Constituição Federal.

Se assim não fosse, a eficácia do art. 156 seria absurdamente limitada ao disposto numa lei complementar. Ora, “instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza” é dispositivo de eficácia plena, irrestrita, imediata, de linha direta ao legislador municipal. Já a segunda parte do inciso III, aí sim, cabe a superveniência de lei complementar.

Não haveria, portanto, necessidade de uma lei complementar federal para os
Municípios instituir imposto sobre serviços não compreendidos na competência
tributária dos Estados. Essa exigência de lei complementar para definir todos
os serviços tributáveis cria um profundo sentimento de incerteza e fragilidade
dos Municípios, pois se chega ao absurdo de que, se não houver lei
complementar, não haverá serviço tributável pelos Municípios, se estes não
podem definir os serviços.

Carece totalmente de lógica e de uma visão mais ampla e científica do tema a
reiterada decisão de que a lista de serviços estampada em lei complementar é
taxativa ou exaustiva. É, sim, taxativa, mas apenas sob o ângulo de evitar
conflitos entre o ISS e o ICMS. Contudo, aos demais serviços, claramente
impossíveis de conflitar com o imposto estadual, a lista é exemplificativa. Ou
melhor, nem deveriam constar da lista, se a competência de identificá-los
pertence ao legislador municipal, e a mais ninguém.

Importante lembrar que a atual Lei Complementar n. 116/03 foi objeto de um
projeto de lei do ano de 1989. Ficou, assim, dormindo nas prateleiras do
Senado durante 14 anos! Os Municípios ficaram dezesseis anos aplicando uma
lista modesta, bisonha e absolutamente fora da realidade da economia, tendo
por base a Lei Complementar n. 56, de 1987. Um prejuízo incalculável nas
finanças municipais.

Neste formato eivado de inconstitucionalidade, porém plenamente aceito pelo
STF, ficam os Municípios à mercê dos interesses políticos dos congressistas e
dos humores palacianos, de prescrever as ditas leis complementares e
receberem a benção ou os vetos da Presidência.

 Do modo que a propalada autonomia municipal é regida ao arbítrio da União. E parece que esta submissão não consta da ordem constitucional.