Roberto A. Tauil - Junho de 2020.
O Brasil é uma federação de Estados, não de Municípios. De fato, os Municípios são entes políticos vinculados a um Estado, o qual tem competência plena para intervir naqueles que estão localizados no seu território, intervenção que não caberia à União, observadas certas exceções.
Os Municípios, portanto, são divisões territoriais de um Estado, a quem cabe instituí-los, incorporá-los, fundi-los e desmembrá-los, tudo através apenas de lei estadual, mas obedecendo ao prazo determinado em lei complementar federal e a depender do resultado de plebiscito das populações diretamente interessadas.
Quando se fala em autonomia de um ente político, fala-se em repartição de competências de gestão, ou seja, de competências funcionais e administrativas executadas com autonomia de poder. Temos, assim, um sistema político que procura conciliar as competências exclusivas ou privativas com as competências comuns ou concorrenciais de todos os entes.
Na definição de José Afonso da Silva, “competência é a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões”.
De acordo com o formato constitucional, a repartição de competências entre os entes políticos se baseia no princípio da predominância de interesse, a dizer que compete à União as questões de interesse predominantemente geral ou nacional; aos Estados, as questões que predominam o interesse regional; e aos Municípios, os assuntos de interesse local.
Contudo, tal divisão de competências é difícil, muitas vezes, de ser estabelecida na prática. Um problema dito nacional pode não afetar todos os Estados. Um problema regional pode não ser de um só Estado. Por tal motivo, os países adotam uma ou um misto das três técnicas seguintes, sem dizer com isso que inexistem outras modalidades de distribuição de competências:
a) enumeração dos poderes da União, reservando-se aos Estados os poderes remanescentes (aqueles que não foram enumerados);
b) atribuição dos poderes enumerados aos Estados e dos remanescentes à União;
c) enumeração exaustiva das competências de cada ente federativo.
O Brasil adota a técnica da enumeração dos poderes da União, reservando aos Estados os poderes remanescentes, mas indicando pontualmente os poderes dos Municípios. No entanto, abre exceções em competências exclusivas que passam a ser privativas e possibilidades de delegação, e ditam áreas de competência comum e suplementar.
O art. 30 da Constituição Federal enumera as competências dos Municípios. E o art. 23 enumera as competências comuns da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Embora possível entender que os Municípios só poderiam atuar nas atividades descritas na Constituição, não são raras as participações municipais em questões definidas na Constituição Federal como de autonomia privativa da União. A Justiça vem entendendo que nos casos em que haja interesse predominantemente local, pode o Município legislar sobre o tema com regras mais rígidas do que as estabelecidas pela União ou Estado.
Desta forma, como diz Helly Lopes Meirelles, a enumeração indicada na Carta Magna não é taxativa e nem exaure as atribuições municipais, mas constitui o mínimo de autonomia que os Estados e a União devem reconhecer em favor dos Municípios.
E temos também a previsão constitucional da gestão associada de serviços públicos. O art. 241 da CF, conforme Emenda Constitucional n. 19/1998, dita o seguinte:
“Art. 241 A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
O eminente constitucionalista, José Afonso da Silva, entende que esse dispositivo era totalmente desnecessário, porque tudo que nele se prevê poderá ser objeto da lei complementar indicada no art. 23, parágrafo único, da Constituição. Diz ainda que as expressões consórcios e convênios aparecem no texto com sentidos diferentes. Na verdade, consórcio designa acordo firmado entre entidades da mesma espécie (Município com Município, Estado com Estado), e convênio é um instrumento que veicula acordos de entidades de espécies diferentes (União com Município, Município com Estado etc.).
O art. 24 da Constituição Federal prevê diversas situações de competência concorrente entre a União e os Estados (inclusive Distrito Federal). Não há, porém, que dizer que os Municípios estejam excluídos de tal concorrência, sendo-lhes possível suplementar a legislação federal e estadual no que couber, levando em conta o previsto no inciso II do art. 30, mas sempre sobre assuntos de interesse local. Ou seja, a limitação imposta aos Municípios é a de determinar que o assunto envolva efetivamente um interesse local.
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet escreveram o seguinte sobre tal assunto:
“As competências implícitas decorrem da cláusula do art. 30, I, da CF, que atribui aos Municípios ‘legislar sobre assuntos de interesse local’, significando interesse predominantemente municipal, já que não há fato local que não repercuta, de alguma forma, igualmente, sobre as demais esferas da Federação” (Curso de Direito Constitucional, Gilmar Ferreira Mendes/Paulo Gustavo Gonet Branco, 7ª edição, Saraiva).
Com base nos ensinamentos de Alexandre de Moraes, a competência dos Municípios pode ser dividida em três tipos: a competência genérica, em razão da predominância do interesse local (art. 30, I); a competência para estabelecer um plano diretor da cidade (art. 182); e a competência suplementar, prevista no art. 30, II.
Pela competência suplementar, compete ao Município suplementar a legislação federal e estadual, no que couber, ou seja, o Município pode suprir as omissões e lacunas da legislação federal e estadual, sem obviamente contraditá-las. Tal competência se aplica também às matérias elencadas no artigo 24 da Constituição Federal.
Tratando-se, então, de matéria de competência comum de todos os entes federativos, como é o caso de cuidar da saúde e assistência pública (Inciso II do art. 23), qual seria a regra a ser seguida, se não houver entre os regramentos dos entes políticos um sentido harmônico de critérios e obrigações?
Alguns autores entendem que a competência legislativa concorrente deve ser sempre vista com o traço característico da repartição vertical, ou seja, predomina a competência da União, em relação aos demais entes políticos (Estados, Distrito Federal e Municípios).
Contudo, importante compreender o que vem a ser repartição vertical de competência. As normas gerais ou de abrangência geral são ditadas pela União, a quem compete editar as regras de orientação normativa global. Aos Estados, cabem unicamente complementar as regras estabelecidas pela União, mas sem possibilidade de contrariá-las. E o mesmo poder tem os Municípios nos casos arrolados no art. 23.
Entretanto, quando ocorre a competência administrativa comum, conforme indica os termos do art. 23, colocando todos os entes políticos em nível igual de hierarquia, os Estados e os Municípios podem instituir regras mais rígidas em relação às indicadas pela União, porém, evidentemente, de obediência restrita ao Estado ou ao Município que a editou.
baixo, trecho de uma decisão judicial relativa ao questionamento da constitucionalidade de lei do Município de Barra do Quaraí, RS, sobre restrições à pesca predatória naquele Município, assunto, em tese, da alçada da União:
Quaraí, situado nas margens do Rio Uruguai, editou lei estabelecendo normas para captura, transporte, comercialização e fiscalização do pescado na área municipal.
Sucede, no entanto, que a Constituição Federal, em seu artigo 24, inciso VI, estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, de forma concorrente, sobre pesca... Mesmo assim, poderia o Município legislar sobre a matéria?
"Pois bem: a resposta no caso é sim. É verdade que existem leis da União e do Estado-membro. Todavia, são normas de natureza mais genérica, que não atendem à situação específica do Município fronteiriço. São as pessoas da localidade que conhecem e enfrentam os problemas da pesca desenfreada. São elas que sofrem os efeitos da diminuição de indivíduos, com direto efeito na alimentação da comunidade. Isso sem falar no fato de que a diminuição do pescado poderá resultar em diminuição das rendas com a ausência de turistas na região... A Lei Municipal de Barra do Quaraí é constitucional e baseia-se no artigo 30, inc. I, da Lei Maior, especificamente no item ‘interesse local’. Trata-se de lei suplementar. Não se daria o mesmo se a lei municipal fosse mais concessiva que o diploma federal e o estadual. Aí certamente incorreria em inconstitucionalidade, pois estaria o Município invadindo área de competência alheia e autorizando aquilo que já estava proibido por aqueles que detêm competência constitucional para legislar. No entanto, sendo mais RESTRITIVA a Lei Municipal, ela em nada está a afrontar os textos dos demais entes políticos; ao contrário está protegendo o meio ambiente e sensibilizando a comunidade para a importância da preservação dos pescados" (Relato do Desembargador Vladimir Passos de Freitas, do Tribunal Regional Federal).
A nossa posição segue tal orientação. Se o Município não tivesse poder nenhum, de nada fazer, quando já existisse norma da União sobre o assunto em pauta, por que, então, a competência compartilhada estabelecida no art. 23?
Em conclusão, assunto de proteção à saúde é de competência dos três entes políticos, conforme o art. 23. Em tais casos, não há supremacia de poder. Ora, se houvesse supremacia a competência não seria de todos, seria da União com o acompanhamento dos demais. Possível, então, entender que havendo regras globais editadas pela União, estas devem ser atendidas, mas sem retirar dos Estados e Municípios a competência de instituir normas mais rígidas de efeito local.
Deste modo, sendo matéria de nítido interesse local (como é o caso da saúde), os Municípios terão sempre competência legislativa suplementar, tendo em vista a existência de interesse local.