A imunidade dos sindicatos dos trabalhadores
O Sindicato Rural de um Município resolveu promover um rodeio com a
cobrança de ingressos. O Fisco local ficou em dúvida se caberia ou não a
incidência do ISS, em vista da imunidade prevista no art. 150, VI, “c” da
Constituição Federal. O Consultor Municipal foi consultado e a resposta foi
dada, mas o assunto merece alguns comentários de interesse geral.
Reza o art. 150, VI, ‘c’ da CF:
“Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI – instituir impostos sobre:
c – patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas
fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de
educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos
da lei” (grifo nosso).
Trata-se de uma regra de eficácia contida: indispensável atender os requisitos
da lei. E, por evidência, por lei complementar, lei que complementa a
Constituição. Se fosse possível uma lei ordinária, cada ente político teria a
liberdade de criar os requisitos que considerassem necessários ao atendimento
da imunidade. E a imunidade cairia do seu pedestal juntando-se à raia comum
das isenções.
Observam-se, assim, as normas expedidas na Lei nº 5.172, de 1966, entendida
e aceita como lei complementar, a dispor sobre o Código Tributário Nacional. O
seu art. 14 prescreve:
“O disposto na alínea ‘c’ do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância
dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:
I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a
qualquer título;
II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos
seus objetivos institucionais;
III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos
de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
§ 1º - Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do art. 9º, a
autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício.
§ 2º - Os serviços a que se refere a alínea ‘c’ do inciso IV do artigo 9º são
exclusivamente os diretamente relacionados com os objetivos institucionais das
entidades de que trata este artigo, previstos nos respectivos estatutos ou atos
constitutivos”.
De início, duas observações importantes:
- o descumprimento de um dos requisitos ditados no Código Tributário Nacional
não elimina o direito de imunidade, mas o suspende durante o período de sua
não observância. Regularizada a pendência, restaura-se o direito.
- o texto do § 2º dá ênfase ao fato de que imunes são apenas os serviços
diretamente relacionados com os objetivos institucionais da entidade imune,
devendo tais serviços estar previstos nos estatutos ou seus atos constitutivos.
Merece registro o fato de que o referido § 2º do art. 14 do CTN faz menção
apenas aos serviços, e não ao patrimônio e as rendas das entidades imunes.
Tal aspecto dá a entender que se um imóvel, de propriedade de uma das
entidades ou instituições imunes, estiver sendo utilizado para outras atividades,
ou mesmo locado a terceiros, continuaria gozando da imunidade e o Município
não poderia cobrar o IPTU de tal imóvel. Aliás, a Súmula nº 724 do STF diz
assim:
“Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel
pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da
Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades
essenciais de tais entidades”.
O CTN tem suas razões, e aparentemente razoáveis, de limitar a ressalva
somente para serviços. Um imóvel sem serventia temporária às finalidades
sociais da instituição pode ser alugado e os recursos decorrentes serem
aplicados na consecução de seus objetivos. O mesmo pode ocorrer nos casos
de aplicações financeiras de recursos ocasionalmente disponíveis. Tanto a
locação quanto a aplicação não exigem grandes dedicações de tempo e de
pessoal da instituição. Não constituem um esforço maior das instituições
imunes. Todavia, prestar serviços estranhos ao objeto social provocaria o
deslocamento de trabalho humano interno e uso de materiais próprios, além de
ingressar em atividades concorrentes aos interesses econômicos privados. Ou
seja, além de deixar de lado os objetivos sociais (e fundamentais) que lhes dão
azo ao gozo do benefício, aproveitar-se-iam da imunidade em concorrências
injustas, em função do custo tributário dispensado.
Outro aspecto a registrar é de que não cabe aos entes políticos aprovarem
outras exigências, tais como requerimento de “reconhecimento” de imunidade,
para que a imunidade seja “aprovada”. Contudo, perfeitamente lícita a ação
fiscal junto à entidade imune, até mesmo para constatar o cumprimento dos
requisitos exigidos. E em tais casos, o ônus da prova do cumprimento dos
requisitos cabe ao pretenso ente imune e não ao Fisco. Veja decisão abaixo:
Superior Tribunal de Justiça:
“(...)
3. Cabe ao contribuinte, autor da ação ordinária e da ação cautelar, comprovar
os requisitos elencados no art. 14 do CTN, essenciais para o gozo da
imunidade tributária pretendida. Precedentes: REsp 825.496/DF, Rel. Min.
Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 04/12/2008; REsp 707.315/DF, Rel. Min.
Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 14/02/2008; AgRg no AREsp 105.288/SP, Rel.
Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 28/03/2012; AgRg nos EDcl no
AREsp 36.553/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe
10/02/2012”.
(AgRg nos EDcl no AREsp 318376/RN – Min. Rel. Benedito Gonçalves – DJ
15/04/2014).
A respeito da imunidade de sindicatos, são duas as questões iniciais de
discussão: A) a imunidade é restrita aos sindicatos dos trabalhadores, não
alcançando os sindicatos patronais? B) As associações de categorias
profissionais estão excluídas do benefício da imunidade?
Na verdade, o art. 8º da Constituição Federal refere-se a dois tipos de
associação: a profissional e a sindical, e ambas são tidas como associações
profissionais, mas a associação sindical goza de maiores prerrogativas,
enquanto as associações profissionais não sindicais se limitam a fins de
estudos, defesas e coordenação dos interesses econômicos e profissionais de
seus associados.
O art. 8º da Constituição Federal permite a livre associação de qualquer
categoria, sendo vedada, porém, a criação de mais de uma organização
sindical na mesma base territorial, que não poderá ser inferior à área de um
Município. Tais disposições aplicam-se, também, aos sindicatos rurais e às
colônias de pescadores.
O ilustre tributarista Ives Gandra da Silva Martins, em parecer publicado na
Internet, diz o seguinte:
“(...) entendo que a expressão "entidades sindicais" é mais ampla que a de
"sindicatos", visto que abrange todas as entidades de trabalhadores reunidos
em uma entidade de defesa de seus interesses. É de se lembrar que o artigo 8º
da Constituição Federal principia com a informação de que é livre a associação
profissional ou sindical, colocando no mesmo nível de liberdade de adesão e
de representação as associações e os sindicatos representantes dos
trabalhadores. Por esta razão, estou convencido que a imunidade do artigo
150, inciso VI, letra "c", refere-se aos dois tipos de associações, a saber: a
sindical e a profissional, lembrando-se que o inciso II do artigo 8º proíbe a
criação de mais de uma organização sindical para cada categoria -- com o que
se justifica a formação de associações profissionais, com mais liberdade de
representação”.
Já o renomado Professor Roque Antonio Carrazza, em sua monumental obra
“Curso de Direito Constitucional Tributário”, 22ª edição, aplaude a imunidade
das entidades sindicais dos trabalhadores (somente dos trabalhadores):
“Andou bem a Constituição ao excluir do benefício as entidades patronais. O
que a Carta Magna pretendeu, sem dúvida, foi favorecer a sindicalização dos
trabalhadores, máxime daqueles que exercem misteres economicamente mais
humildes (v.g., barbeiros, empregados do comércio varejista, padeiros etc.)”.
Talvez, a solução do impasse esteja na análise do motivo de a Carta de 1988
ter inserido os Partidos Políticos e as Entidades Sindicais dos Trabalhadores
no rol das imunidades tributárias. Percebe-se que há uma tentativa de defesa
dos direitos dos cidadãos em constituírem partido político ou associarem-se em
sindicato, sem que sofram imposições tributárias que poderiam inibir a
liberdade de associação, tanto em partido político quanto em sindicatos. Ficam,
assim, as classes políticas dominantes impedidas de impor, através da
instituição de tributos, limitações aos direitos de associação dos cidadãos. E
neste teor, por motivos isonômicos, protegem-se os trabalhadores de
categorias econômicas mais carentes de recursos das pressões contrárias
patronais, estas, em tese, mais próximas do poder governante e de maior base
financeira ou econômica.
De qualquer modo, a regra imunitória trata apenas de entidades sindicais dos
trabalhadores, às quais se incluem os sindicatos rurais e as colônias de
pescadores, mas não se pode esquecer que a associação de uma categoria
profissional, constituída de forma regular e moralmente correta, não tem
capacidade contributiva, pois a sua receita destina-se, exclusivamente, ao
atendimento de suas finalidades institucionais. Surge daí inúmeras discussões
judiciais e o assunto ainda não está pacificado.
Diante do exposto, a nossa opinião é de que o Fisco Municipal deve acatar a
regra constitucional da forma escrita, ou seja, apenas para sindicatos dos
trabalhadores, pelo menos enquanto o Supremo Tribunal Federal não decidir a
questão de uma vez por todas. Apesar dos pesares, portanto, devemos seguir
a literalidade do texto da Constituição.
E o último aspecto a enfrentar, o assunto maior da consulta do assinante,
refere-se ao serviço de promoção de rodeio, prestado pelo Sindicato Rural. Ao
examinar os estatutos da entidade sindical percebe-se, facilmente, que a
promoção de festas e rodeios não se alinha nos objetivos institucionais do
Sindicato. E neste caso, entra em cena o previsto no § 2º do art. 14 do CTN,
cuja redação é muito clara no sentido de afastar do direito de imunidade as
prestações de serviços estranhas ao objeto social da instituição.
Em tal situação, o Sindicato se perfila como empresa prestadora de serviços,
ao utilizar seus meios para atuar em atividade econômica estranha aos seus
objetivos institucionais. Cabível a imposição do ISS.
Roberto A. Tauil
Junho de 2014.