Por Miqueas Liborio de Jesus ¹
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Historicamente se entendeu que o imposto sobre a transmissão de bens imóveis Inter vivos (ITBI), é um imposto simples e de fácil arrecadação. Como a eclosão dos grandes empreendimentos e da expressiva valorização imobiliária, consequentemente, aumentou o interesse tributário municipal, e aquilo que se tinha como simplório ganhou contorno dramático, em face da imunidade tributária estampada no inciso I, do parágrafo segundo (§2º), do artigo 156, da Constituição Federal.
É cediço que as imunidades tributárias são limitações ao poder de tributar, e implica na supressão da competência tributária dos Entes Políticos (União – Estados – Distrito Federal – Municípios), retirando-lhes a faculdade de criar leis, para inserir no campo de incidência tributária aquilo que foi imunizado. Eis aqui uma das razões pela qual a doutrina diz, que as imunidades tributárias são verdadeiras hipóteses de não incidências, constitucionalmente qualificadas.
Em face da crescente busca de vantagens tributárias ou não, a citada desoneração constitucional, a qual obstou a incidência do ITBI “sobre as transmissões de bens imóveis à pessoa jurídica, em realização de capital”, tornou-se portal por meio do qual há articulação de mecanismos voltados à proteção patrimonial, ao planejamento tributário ou sucessório, dentre outras possibilidades.
No tocante ao planejamento tributário, é importante dizer que o ordenamento jurídico pátrio não coíbe a elisão fiscal ou tributária, assim entendido toda ação voltada ao propósito de reduzir, retardar ou postergar o ônus tributário. É consenso doutrinário e jurisprudencial que planejamento tributário (ou elisão fiscal), desde que concebido nos limites da ordem jurídica, é procedimento legítimo, dado que é capaz de gerar legalmente uma redução da carga tributária incidente sobre os negócios ou atividades empresariais.
Não obstante, vale lembrar, que existem inúmeros princípios - dentre eles: do direito de propriedade, da legalidade, da segurança jurídica, da livre iniciativa, da liberdade contratual, da capacidade contributiva, da legalidade tributária, do não confisco, entre outros - que não só autorizam a elisão fiscal, mas também legitimam, tutelam e protegem o direito subjetivo (fazer ou não fazer) dos cidadãos de, licitamente, se esquivarem das exações. Em outras palavras: se não há proibições e contrariedades às normas e aos princípios pode.
É neste contexto que surge a necessidade de se buscar a intenção do Legislador Constituinte Originário, quando da concepção do inciso I, do § 2º, do artigo 156, da Magna Carta, visando entender qual a destinação da aludida desoneração tributária, uma vez que, ao se analisar a estrutura normativa imunizante, salta aos olhos dois momentos: a) afastamento da incidência do ITBI sobre as transmissões de “bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital”; e, b) não cabimento da desoneração quando "a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil".
Do arquétipo constitucional erige o entendimento de se tratar de imunidade tributária condicionada e de cunho subjetivo, pois sua fruição se prende a aferição futura da preponderância da atividade, a qual, por força do inciso II, do artigo 146, da Magna Carta, deve ser feita sob os ditames do artigo 37, da lei federal n° 5.172/1966 (Código Tributário Nacional - CTN).
Diante disto se indaga: quais os desígnios da aludida condicionante?
Sem sombra de dúvidas, a resposta está na compreensão das exigências tributárias, as quais, em fina síntese, redundam na necessidade de financiamento do próprio Estado, o qual, valendo-se do seu poder, impõe aos cidadãos o dever de entregar certo e determinado valor em dinheiro, naquilo que chamamos por nome de tributos (vide artigo 3º do CTN), cuja voracidade se acha tolhida sob o manto das limitações ao poder de tributar, as quais se traduzem em verdadeiro código de defesa do cidadão contribuinte.
Toda esta engrenagem deve ser vista de forma harmônica, razoável e proporcional, não sendo lícito ao Poder Público esvaziar o patrimônio do Cidadão, assim como, a este, é proibido furtar-se ao pagamento, visto que os tributos são obrigações de natureza ex legis.
Assim, quando a Magna Carta, obstaculizou a incidência do ITBI sobre as transmissões de bens imóveis à pessoa jurídica, em realização de capital, ela não criou uma mera benesse fiscal, na verdade, ela forjou uma robusta norma constitucional antielisiva e, sob seu manto, aprisionou o Fisco e o Sujeito Passivo, no que tange a verificação da preponderância da atividade.
A inteligência normativa do inciso II, do § 2º, do artigo 156, da Magna Carta visou incentivar o empreendedorismo e por via dele criar fontes de trabalho e a geração e circulação de riqueza, impedindo que a imposição do ITBI esvaziasse o patrimônio reservado para tal fim. Esta seria o motivo pelo qual se obstaculizou a desoneração tributária daquelas pessoas jurídicas, cujos sócios buscam a mera especulação imobiliária, por via da “compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”, obtendo meras vantagens particulares, em detrimento do interesse social.
Idêntico entendimento foi manifestado pela egrégia 22ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, por unanimidade de votos, desproveu a apelação cível nº JAFC Nº 70068958545 (Nº CNJ: 0106048-17.2016.8.21.7000) 2016/CÍVEL e consignou na ementa do julgado:
“O legislador constituinte, ao imunizar a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em integralização de capital (art. 156, § 2º, I, da CF), pretendeu exclusivamente incentivar o crescimento da empresa, evitando que o recolhimento do ITBI se transformasse num estímulo contrário à formalização dos negócios. Qualquer desvio de finalidade da norma constitucional, direcionada a beneficiar pessoalmente os sócios, deve ser coibida.”
Em sede do voto condutor o eminente desembargador José Aquino Flôres de Camargo, ao versar sobre a necessidade de se buscar os desígnios imunizantes, transcreveu a doutrina de Ricardo Alexandre (in DIREITO TRIBUTÁRIO ESQUEMATIZADO. Ed. Método. 9ª edição. p. 662), a qual foi consignada na ementa. Alem desta, no bojo do voto, também colacionou lição de Aires F. Barreto, para quem:
“O legislador constitucional pretendeu imunizar situações que demonstrem o crescimento das pessoas jurídicas, em que há a transferência de bens imóveis dos sócios para a pessoa jurídica, para o pagamento do capital social subscrito. Isso porque a não-tributação dessas situações pelo ITBI visa a facilitar a mobilização dos bens imóveis de seus sócios para as pessoas jurídicas.” (in CURSO DE DIREITO TRIBUTÁRIO MUNICIPAL. Ed. Saraiva. 2009. p. 305)
Decorre que não se pode interpretar e aplicar a citada imunidade tributária como simples desoneração, pois seus desígnios são outros. Não se olvida que o empresário possa especular, ele pode sim e deve, pois vigora no ordenamento pátrio os princípios da livre iniciativa e da liberdade negocial. Contudo, não pode haver o desvirtuamento da imunidade tributária para pura e simples obtenção de vantagem particular.
É preciso que a intenção dos sócios, quando da formalização da sociedade, harmonize-se com o espírito antes retratado, caso contrário, à luz do artigo 118 da lei federal nº 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN), o Fisco pode abstrair a validade jurídica dos atos efetivamente praticados, bem como a natureza do seu objeto ou dos seus efeitos dos fatos praticados e impor a exação tributária, lembrando que a incidência tributária erige da ocorrência do fato gerador, não podendo o sujeito passivo buscar formas jurídicas como o fino propósito de impedir ou contornar a exigência do imposto, caso em que estará presente o planejamento tributário abusivo (elusão fiscal), caracterizado pelo abuso de forma, ausência de propósito negocial ou abuso de direito, institutos que conduzem à fraude à lei tributária.
¹ - É Auditor Fiscal da Receita Municipal de Joinville (desde 03/1998); Julgador titular da Junta de Recursos-Tributários do Município de Joinville (JURAT); Professor das disciplinas de Introdução ao Direito, Direito Comercial e Societário, Direito Tributário e Planejamento Tributário do curso de Ciências Contábeis da UNISOCIESC e Professor da disciplina de Direito Tributário II do curso de Direito da Associação Catarinense de Ensino (ACE/FGG).